Albergues ou hostels: cuidados

Albergues ou hostels: cuidados

Os eventos esportivos de importância mundial que se desenvolverão no Brasil nos próximos meses têm fomentado a criação de albergues ou hostels (inclusive em favelas), conhecidos por disponibilizarem hospedagem com baixo custo, objetivando acolher o esperado grande número de turistas e participantes, estrangeiros ou não, nem sempre dispostos a gastos elevados. É o que tem sido noticiado, o que me fez rever alguns conceitos relacionados ao tema, que podem ser úteis aos empreendedores e aos usuários interessados. Qual é o contrato que existe entre o albergueiro, aquele que proporciona hospedagem, e o seu hóspede? Quais são as lei aplicáveis a essa relação e as cautelas que um e outro precisam observar? Incide o Código de Defesa do Consumidor? Como desalojar o usuário indesejado?

Em resumo, quanto à sua definição e considerando a tendência de se tentar enquadrar as relações jurídicas nas modalidades típicas herdadas de Roma, costuma-se enxergar na hospedagem um contrato sui generis, formado pela mistura de vários outros, com os quais, entretanto, não se confunde: locação de coisa imóvel (espaço físico individual, quarto ou unidade habitacional) e de coisas móveis (bens que guarnecem o quarto, como cama etc.); locação de serviços (de portaria, recepção, segurança, limpeza etc.); venda e compra de produtos alimentícios e outros (café da manhã, itens para higiene pessoal etc.); depósito e penhor (de bagagens). Outras peculiaridades presentes na hospedagem são a provisoriedade, a curta duração e o pagamento de retribuição diária.

Por muito tempo, contrato de hospedagem foi atípico e inominado na legislação brasileira, tanto que, mesmo no Código Civil, de 2002, o que há sobre ele são referências esparsas e pontuais sobre: (i) prescrição anual do direito de cobrar o valor devido pelo hóspede (art. 206, § 1º, inc. I); (ii) caracterização do depósito necessário quanto aos pertences do usuário (arts. 649-651); (iii) responsabilidade civil daquele que hospeda (arts. 932, inc. IV); e (iv) penhor legal em favor do empreendedor sobre as coisas do hóspede (arts. 1.467-1.468).

Atualmente, no entanto, tal contrato pode satisfatoriamente ser conceituado, pelo menos indiretamente, com base nas normas que regulam a atividade de hotelaria (que precisa ser autorizada e é fiscalizada), como a lei n. 11.771, de 2008, além de decretos do Poder Executivo, como o decreto n. 7.381, de 2010; portarias do Ministério do Turismo, orientações da Embratur (Empresa Brasileira de Turismo) etc.. Do Ministério do Turismo, interessa a portaria n. 100, de 2011, por fazer a classificação dos meios de hospedagem.

Trata-se de contrato que, teoricamente, poderia ser aperfeiçoado verbal ou tacitamente, isto é, não necessita ser firmado por escrito para que seja válido. Todavia, devido à quantidade de exigências legais relativas à atividade, principalmente ligadas ao dever de informação, quase sempre há necessidade da produção e exposição de vários documentos, obtendo-se a adesão a todas as regras do estabelecimento mediante assinatura do usuário em ficha de identificação e registro, o que já representa também o contrato de hospedagem (decreto n. 7.381, de 2010, 26, § 1º).

O albergueiro é considerado prestador de serviços ou fornecedor de meios de hospedagem (lei n. 11.771, de 2008, art. 21, inc. I), sendo o seu cadastro obrigatório no Ministério do Turismo, sem o qual não pode exercer a atividade (art. 22 e § 3º). Meios de hospedagem são estabelecimentos destinados a possibilitar alojamento temporário em unidade habitacional de uso de hóspede, bem como outros produtos e serviços, mediante cobrança diária (art. 23). Unidade habitacional é “o espaço atingível a partir das áreas principais de circulação comuns no estabelecimento, destinado à utilização privada pelo hóspede, para seu bem estar, higiene e repouso” (decreto n. 7.381, de 2010, art. 24).

Houve definição desse contrato como sendo de prestação de serviços, o que pode favorecer a aplicação, na omissão de tais regulamentos e no que for cabível, do Código Civil, também, principalmente dos arts. 593-609, que tratam especificamente do contrato de prestação de serviços de uma maneira geral.

O exercício irregular, isto é, não cadastrado e não fiscalizado da atividade de hospedagem, além de acarretar inúmeras possibilidades de penas administrativas e civis, inclusive advertência, interdição e pesadas multas, pode levar a uma curiosa solução prevista no art. 606, parágrafo único, do Código Civil, consistente na impossibilidade legal de cobrar a retribuição correspondente ao trabalho executado, tendo em vista a violação das leis de ordem pública relacionadas ao turismo e à proteção do consumidor.

Sem dúvida, é de consumo a relação entre o empresário do hostel, fornecedor de produto e de serviço, e o hóspede, seu consumidor final, ensejando, assim, a aplicação das leis relacionadas ao turismo e do Código de Defesa do Consumidor (CDC), com todas as obrigações, incluindo a de dar informações claras e precisas, com sujeição às penalidades administrativas, criminais e civis. Na atual lei e no decreto que rege a atividade de hospedagem há várias referências expressas ao CDC.

Mesmo o micro e pequeno empresário, ainda que pessoa natural, não está isento de todos esses riscos, uma vez que, por exemplo, segundo a classificação oficial da portaria n. 100, de 2011, do Ministério do Turismo, também a “hospedagem em residência com no máximo três unidades habitacionais, para uso turístico, com serviços de café da manhã e limpeza, na qual o possuidor do estabelecimento resida” é tipificada como meio de hospedagem, denominado “cama e café”. É quase impossível “empreendimento” menor que esse e, acima dele, está o tipo “pousada”, no qual os demais estabelecimentos afins podem se enquadrar.

Há, também, para o albergueiro desavisado, o risco de incorrer em contravenção penal, se tentar exercer atividade econômica regulamentada sem o cumprimento das exigências determinadas por lei, com perda da primariedade e risco de prisão simples de até três meses ou multa (decreto-lei n. 3.688, de 1941, art. 47).

Sobre como desalojar o usuário indesejado, o princípio da defesa imediata da posse é cabível e normalmente exercido pelo bloqueio do hóspede logo na recepção antes do início de outra diária. Defesa judicial da posse, se necessária, pode se dar por demanda de natureza possessória, com liminar, o que é muito rápido, não se podendo falar em demanda de despejo, já que não se cuida de locação predial urbana nem a hospedagem se rege pela Lei do Inquilinato. Isso está expresso nessa mesma lei de locações de imóveis urbanos (lei n. 8.245, de 1991, art. 1º, parágrafo único, alínea “a”). É bem melhor que exista esse meio mais rápido de desalojar o usuário, porque dificilmente o estabelecimento que hospeda saberá antecipadamente se está recebendo um hooligan.

Essa é a advertência a todos aqueles que imaginam ser fácil e tranquilo ser empresário nesse setor, em bairro nobre ou em favela, o que é indiferente para os efeitos da lei. E, para os hóspedes dessa modalidade de baixo custo, estejam eles cientes de que seus direitos são os mesmos dos usuários de estabelecimentos mais requintados, “cinco estrelas”. Os locais de hospedagem podem ser muito distintos, mas os deveres dos empreendedores são quase iguais e os direitos dos diferentes consumidores são idênticos.

Paulo Eduardo Fucci 21.8.2013

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